Postal IX
...AGORA, SIM, vejo Cecília, fria e soberana, brincando com uma lata de espargos, à porta do bar. Compreendo a sua maneira de se demorar diante do passado quando, num breve minuto, nos fitou a todos, a mim e ao jornalista embriagado, dos anos 44-45. E compreendo igualmente o tom minucioso de marinheiro em confidência com que outro homem desses mesmos anos 44-45 se debruçou sobre um passado diferente, um outro tempo vencido que um golpe imprevisto veio cortar.
"Sei o que joguei, meu amor", lê-se, entre outras coisas, numa carta escrita há uma semana por Cecília. "Mas eu não podia suportar por mais tempo a ideia de estares fechado numa prisão, tu que tanto gostas de viver e que me ensinaste tantas coisas belas da vida. Foi por isso, e por mais nada deste mundo, que eu me liguei a ele. Foi por ti, pois eu em mim já nem sequer pensava. Serás capaz de compreender isto? Durante um mês resisti a ir ter com ele até que me senti com coragem e arrisquei. Arrisquei, não. Perdi sabendo que perdia. Fiz o que pude, meu amor. Não me podes levar a mal por ter sido pouco e mal feito. Perder-te! Vê tu ao que eu cheguei: perder-te para te salvar! Cheira a fado lamechas que tresanda, mas que queres? O fado vai bem com as pegas e se calhar é essa a minha vocação. Agora, meu amor, despeço-me. Depois disto não há himenorrafia que me reabilite. Se há, só tu o podes saber..."
E para terminar um raciocínio muito dela:...
in Lavagante, encontro desabitado, José Cardoso Pires
<< Home