segunda-feira, julho 14, 2014

Postal XII

... - A consciência de certas dignidades é então desconhecida em vocês? - perguntou, numa reprovação.
E, ante o olhar de Teresa que estacava, ele mesmo ficou desorientado, remoendo em si a vergonha da sua atitude, que lhe parecia talvez, agora um lugar-comum de educação ou erro de sensibilidade.
- Olha - volveu, com simplicidade -, acima de tudo tenho a impressão que tu és extraordinária, e eu um homenzinho minúsculo a rabear numa grande encenação falseada, de sofrimento. Vivo teatralmente. Não há mal nisto, mas não consigo sentir em mim nada de inteiramente verdadeiro. Sou a antítese do homem normal. Às vezes é desesperador. No íntimo de mim mesmo, sempre um olhar autocrítico, sempre a frase, a observação, a pose artística do sentimento. Que bom para ti não saberes nada disto! Não é certo que não sabes nada disto?
- Não senhor, não sei - disse a rapariga, baixando o olhar.
Pedro, para lhe desvanecer a estranheza, pôs-se subitamente a falar de pequenos assuntos comezinhos, histórias risonhas, numa linguagem chã que a si mesmo fazia rir. E em breve ambos conversavam longamente, numa voz abafada, para não acordarem a garotinha que dormia na sombra, ofegando um pouco, com o brilho nublado dos seus grandes olhos sob a pálpebra entreaberta. E chovia. Caía a pesada bátega que não parava mais; a tarde escurecia; o cheiro particular do crepúsculo, no campo, subia do vale onde os colmaços fumegavam sobre as lareiras. As glicínias, defronte, pendiam fustigadas pela chuva; cada pequeno cálice, dum rosa violáceo, chorava longos pingos sobre o muro. ...

in Mundo Fechado, Agustina Bessa-Luís