sábado, março 27, 2010

Voto interrompido

O PS ansiava por Passos Coelho, o CDS não queria Rangel. Foi pena não se ter discutido isto. Agora já está tudo servido.
O PSD entrou ontem no campo que não me seduz. Onde o PS, de e pós-Sócrates, passeia nas campanhas eleitorais a aclamar o que se quer ouvir e não o que se vai passar. Um campo onde certamente ganhará muitos votos e perderá alguns (ontem o CDS cresceu).  No campo da diluição da identidade do PSD, num sítio muito mais volátil onde se ganha hoje e se desaparece amanhã. Aqui não voto.

domingo, março 21, 2010

Poesia

COMPOSIÇÃO DE LUGAR

Não caibo nesta tarde que me desfolhas
sobre o coração. Renovam-se-me sob os passos
todos os caminhos e o dia é uma página que lida
e soletrada descubro inatingível como o vento a rua e a vida
As mesmas mãos que antes desfraldavam 
domésticas insígnias abaixo dos beirais
emprestam novos pássaros às árvores
Pétala a pétala chego à corola desta minha hora
Roubo o meu ser a qualquer outro tempo
não há em mim memória de alguma morte 
em nenhum outro lugar me edifiquei 
Arredondas à minha volta os lábios para me dizer
recuo de repente àquele princípio que em tua boca tive
Eu sei que só tu sabes o meu nome
tentar sabê-lo foi afinal o único
esforço importante da minha vida
Sinto-me olhado e não tenho mais ser
que ser visto por ti. Há no meu ombro lugar 
para o teu cansaço e a minha altura é para ser medida
palmo a palmo pela tua mão ferida

in Aquele Grande Rio Eufrates, Ruy Belo

quinta-feira, março 18, 2010

Postal

...e quando vim para Lisboa o meu tio tirou uma fotografia da carteira e não era a minha avó, era o senhor da brilhantina e dos lábios pintados, a sorrir no meio dos painéis das partidas e chegadas, das lojas de artesanato, de sanduíches, de bebidas, dos guichés, dos bagageiros, das funcionárias fardadas, só faltava o acordeão, só faltavam os violinos, e eu com vontade de lhe devolver o retrato
                                      - Não quero isto para nada  
a guardá-lo na algibeira, contrariada, o meu pai equilibrava-se na muleta como uma avestruz instável, de tempos a tempos, sabendo que o não faria, pensava 
                                     - Tenho de escrever  para Colónia
no Natal, na Páscoa e na altura dos anos recebia um postal com uma praça, uma rua, uma paisagem chuvosa, passados meses troquei de emprego e de pensão e os postais cessaram, conheci o Álvaro na escola de cinema onde me matriculei para me distrair do trabalho, era fácil reparar nele por ser o único que não usava barba, e o Ricardo a encolher os ombros, despeitado
                                    - Não tenho medo nenhum, só não quero chatices....

in A morte de Carlos Gardel, António Lobo Antunes

terça-feira, março 16, 2010

As partilhas do ouro

" A República, a Ditadura e a democracia 'europeia' de hoje aumentaram, não diminuíram, o peso do Estado sobre a sociedade. Com uma diferença. Em 1834, a esmagadora maioria da população vivia da agricultura, o que lhe dava por natureza uma certa autonomia. A presença do estado do Estado era sentida nas cidades e em algumas vilas particularmente importantes. Excepto pelo imposto, pelo recrutamento militar e, de longe em longe, pela justiça, não era sentida no país rural. Quando o grosso da população se transferiu para a 'indústria' e os 'serviços', mesmo essa forma acidental de liberdade acabou."

in A Revolução Liberal (1834-1836), Os Devoristas, Vasco Pulido Valente.





























O regime não mudou, depois da Monarquia a República, depois da Ditadura a Democracia, mas o regime não mudou. Em Portugal muito continuou como sempre, o Estado visitou o notário e oficializou a genealogia, o apelido passou a Estado-Empresa. E a empresa tem de dar emprego, tem de fidelizar os clientes dando-lhes vantagens. Á saída da loja em vez do volte sempre sussurra um "vote sempre". Dê-me o seu voto e vai ver que para a próxima tudo correrá melhor.
- Ah, e não se esqueça! O segredo é a alma do negócio.
Mas a empresa tornou-se amadora, perdeu critério na admissão de sócios e começou a pagar balúrdios aos seus funcionários. Ao mesmo tempo, a ignorância (amadorismo) dos seus gestores não foi tida em conta pelos principais acionistas e os relatórios de  contas passaram a actos de fé. Por Lisboa a coisa começou a espalhar-se e ao mesmo tempo ( de repente para uma maioria) percebeu-se que o País começava a dar sinais da desorçamentação e que a empresa não se ia aguentar. Mas as partilhas já tinham começado há muito. 
(escrito há algumas semanas)

domingo, março 07, 2010

Duas lentes com um fio que as liga

- O meu cérebro parou há muito tempo. Que pensas tu disto? Concordas comigo?
- Não sei, preciso de algum tempo para te responder. Quanto me dás?
- Tempo, pedes que te dê tempo! 

- O meu cérebro parou há muito tempo. Que pensas tu disto? Concordas comigo?
- Não sei, preciso de algum tempo para te responder. Quanto tempo me dás?
- Tempo, pedes que te dê tempo, como posso dar-te tempo? Não sou dono do tempo, não poso dar-te aquilo que não tenho. Posso esperar o tempo que desejares mas tempo não tenho para te dar, espero que respondas mas ao esperar não te estou a dar tempo. Estou apenas a esperar que ele passe. Espero o que for necessário mas entretanto não possuirás mais tempo por causa disso, de tempo continuarás igualmente possuidor como desde o tempo em que começámos a conversar. Alguma vez alguém te deu tempo? Diz-me por favor se alguém alguma vez te ofereceu tempo, quero conhecer essa pessoa, convidá-la para minha casa, quero conhecê-la.
- Queria dizer que esperasses algum tempo para poder responder-te, que preciso de tempo para poder responder-te.
- Que vai acontecer durante esse tempo que eu esperar, peço-te que me respondas já. Se não puderes responder já à minha pergunta explica-me então o que vai acontecer durante esse tempo que espero. Confio em ti que me responderás mas preciso de saber o que acontece entretanto.


quarta-feira, março 03, 2010

O casaco de L

L partiu para o Cairo. L partiu para o Cairo há três dias. Deixou a palavra desterritorialização em texto e em som, ouvida parece diferente de escrita mas não é. Ouvida soa a abandono, escrita lembra-me mapas onde se movem alfinetes de pontas coloridas (de plástico). Alfinetes que marcam os sítios onde se esteve, se desejou ir, se quer ir. Coordenadas que podem levar a outros mapas com um só desvio do olhar. 
- Jogo de azimutes
- Eixo de plenitude
L partiu para o Cairo e deixou o casaco no meu quarto.