quarta-feira, abril 28, 2010

Direita Esquerda


Ia dizer Meu Amor, Era de Noite mas não, antes:

20
pois num país sempre a dormir
porque não hei-de em qualquer canto
deixar-me estar antes de abrir
da doce aurora o róseo manto?
se cada um só quer ver quanto
ressona mais do que o vizinho,
eu sendo assim, não me levanto:
vai portugal por mau caminho.

in testamento de vgm, Vasco Graça Moura

segunda-feira, abril 26, 2010

Postal IV

...e conforme tinha prometido, o meu pai veio buscar-me nesse sábado, ofereceu-me dois gelados de morango no Jardim Zoológico, ele que nunca me oferecia gelados, sem se importar que eu sujasse a camisa e sem me chamar porco, ofereceu-me um balão, desses que se a gente larga o fio desaparecem no ar, deu dinheiro ao empregado do elefante e a tromba pegou na moeda, tocou uma corneta, badalou um sino, engoliu um molho de nabiças, estendeu-se para nós e o meu pai, a apontar umas grades antes que lhe pedisse mais moedas
                                            - Anda visitar as zebras, Nuno
e por causa do homem que agora, além da perna, pusera a palma sobre a palma dela e movia o polegar para cá e para lá a fazer-lhe cócegas na pele, a minha casa não era a minha casa e a minha mãe não era a minha mãe, de modo que avancei três passos e encostei a barriga à toalha a pensar Não me rala que me batam
                                            - Não gosto de ensopado e não gosto de si
e o cigano, que usava um anel de oiro com uma pedra do tamanho de um ovo, ligou o motor, arrependeu-se, desligou-o, fez sinal para que me aproximasse dele e ao fazê-lo a pulseira brilhou
                                           - Amanhã sem falta para continuarmos amigos...

in A morte de Carlos Gardel, António Lobo Antunes

sexta-feira, abril 23, 2010

Chegou!

quarta-feira, abril 21, 2010

O meu nome é Pedro, filho de Isabel

Pedro ofereceu-lhe ajuda mas Dalila não tinha malas nem sacos, tinha subido o rio durante trinta anos e não trazia nada, apenas um vestido castanho que podia agora ser lavado nos tanques laterais à fonte.
Pedro não sabia o seu nome, se tinha filhos se tinha casado ou onde tinha nascido.
Quando Pedro a viu, Dalila tinha já subido o Nilo, poderia ter subido o Douro ou o Mondego mas então o baptismo teria sido outro. Amélia ou Inês.
- Quanto tempo estiveste aqui?

Postal III

...                                        - Tu sabes por acaso que horas são, miúdo?
o Ricardo a procurar os meus calmantes no armário do lavatório, enchendo o copo dos dentes de água que sabia a fio dental, e regressando a correr para a varanda na esperança de que o próximo automóvel fosse o táxi que me trazia, na esperança de me ver dobrar a esquina a tirar as chaves da carteira, o Ricardo incapaz de se zangar, incapaz de me fazer perguntas, incapaz de ralhar-me, tão agradecido, coitado, por eu estar ali, que me dava ao mesmo tempo irritação e pena, sentei-me num dos bancos da sala de espera, encostei a nuca ao espaldar, fechei os olhos, se eu marcasse o número de Algés nem duas vezes tocaria
                                            - Cláudia?, Cláudia?, és a Cláudia, não és?
numa voz carregada de esperança, num ofegar de passarinho que esmorecia, se calava, que teimava de novo
                                            - Cláudia?
encostei a nuca ao espaldar, fechei os olhos, senti que me afundava num cansaço sem sonhos, faltava muito tempo para me chamarem e contudo, sempre que o altifalante anunciava uma partida, despertava num sacão áspero de sangue
                                            - O que foi?
e amanhecia como outrora amanhecia em Benfica, e rodava na cadeira como rodava nos lençóis, e acalmava, e acomodava-me melhor, e estendia as pernas, e tornava a fechar os olhos, escutava uma voz que caminhava, descalça, para o quarto do Nuno, uma voz a sossegar-me como quem sossega um susto de criança
                                            - Nada, dorme, nada...

in A morte de Carlos Gardel, António Lobo Antunes

domingo, abril 11, 2010

Postal II

...e a agência de viagens era uma loja comprida, secretárias, pessoas que telefonavam, cartazes, uma mulher a levantar os olhos contrariados de uma confusão de papéis, a pousar o cigarro
                                        - Para a Alemanha?
e no restaurante, na mesa junto à cozinha, havia uma cadeira vaga entre o chefe de repartição e o Ricardo, pratos alentejanos na parede, um relógio antigo, um pote de flores e uma lebre empalhada num nicho, os colegas tinham despido os casacos, arregaçado as mangas, alargado o nó da gravata, estendiam os garfos para as travessas, conversavam riam, e era como me estivesse a despedir de tudo, a dizer adeus a tudo, e a mulher, que usava anéis em quase todos os dedos, procurando cigarros às cegas, sem compreender
                                        - Um bilhete de ida e volta sai-lhe mais barato
máquinas de escrever eléctricas, horários de aviões, perfumes misturados, uma agitação preguiçosa, saí a guardar um envelope na carteira, o Cais do Sodré coroava-se de gaivotas, A partir de amanhã nunca mais vejo isto, caminhei trinta metros se tanto sob as nuvens baixas, empurrei o guarda-vento e lá estavam, num fumo de guisado, as discussões dos colegas, as piadas, as anedotas, os empregados que se tratavam pelo nome, a timidez do Ricardo, a minha voz, como se não fosse a minha
                                        - Só me interessa um bilhete de ida, não faço tenções de voltar...

in A morte de Carlos Gardel, António Lobo Antunes


sexta-feira, abril 09, 2010

Páscoa

Cheguei da Páscoa há alguns dias, cheguei da Páscoa em casa e espero que ela fique comigo. A Páscoa com aqueles que abrem a porta e com quem se reza. A Páscoa com aqueles por quem se vive.

Com Aquele que me visita, Aquele que me anima e a quem peço:
lava-me, e ficarei mais alvo do que a neve.