(...) Nunca imaginei o sem abrigo em Lisboa diante da casa dos meus pais, olhando a janela sabendo que eu estava, não me pilharam a sair o portão, não disse a ninguém que me ia embora, segui para o Guincho a fim de apanhar a camioneta da Malveira na praceta do mercado e depois a estrada velha até ao início da cidade, sebes, ovelhas, um burro com um anão atrás, a bater-lhe nas patas com a varinha, as primeiras barracas, os primeiros pombos, a cidade a pouco e pouco e nisto, junto a uma esquina, o sem abrigo amparado a uma árvore, de frente para a janela, comigo no sofazito do meu pai, de regresso aonde pertenço, nem uma pessoa que me acompanhasse, para quê, de que me serve seja quem for agora, se alguém perto o que diria eu, se me falassem o que respondia, no caso de chegar à marquise vejo o sem abrigo de novo, o que procura, o que pretende, acenei-lhe e não me respondeu, quem imaginará que sou, não trouxe um único objecto para aqui, ainda há sobras do reposteiro, um pedaço de tapete no fio, um retrato e no retrato os meus pais com muito menos feições do que quando os conheci, o meu pai de sobretudo e a minha mãe de luvas, sérios, fitando-me, em geral, quando me observavam, achava-me culpado, a minha mãe, sem confiança em mim
- Que asneira terá ele feito desta vez? (...)
in Da Natureza Dos Deuses, António Lobo Antunes