... - Tu sabes por acaso que horas são, miúdo?
o Ricardo a procurar os meus calmantes no armário do lavatório, enchendo o copo dos dentes de água que sabia a fio dental, e regressando a correr para a varanda na esperança de que o próximo automóvel fosse o táxi que me trazia, na esperança de me ver dobrar a esquina a tirar as chaves da carteira, o Ricardo incapaz de se zangar, incapaz de me fazer perguntas, incapaz de ralhar-me, tão agradecido, coitado, por eu estar ali, que me dava ao mesmo tempo irritação e pena, sentei-me num dos bancos da sala de espera, encostei a nuca ao espaldar, fechei os olhos, se eu marcasse o número de Algés nem duas vezes tocaria
- Cláudia?, Cláudia?, és a Cláudia, não és?
numa voz carregada de esperança, num ofegar de passarinho que esmorecia, se calava, que teimava de novo
- Cláudia?
encostei a nuca ao espaldar, fechei os olhos, senti que me afundava num cansaço sem sonhos, faltava muito tempo para me chamarem e contudo, sempre que o altifalante anunciava uma partida, despertava num sacão áspero de sangue
- O que foi?
e amanhecia como outrora amanhecia em Benfica, e rodava na cadeira como rodava nos lençóis, e acalmava, e acomodava-me melhor, e estendia as pernas, e tornava a fechar os olhos, escutava uma voz que caminhava, descalça, para o quarto do Nuno, uma voz a sossegar-me como quem sossega um susto de criança
- Nada, dorme, nada...
in A morte de Carlos Gardel, António Lobo Antunes