domingo, abril 11, 2010

Postal II

...e a agência de viagens era uma loja comprida, secretárias, pessoas que telefonavam, cartazes, uma mulher a levantar os olhos contrariados de uma confusão de papéis, a pousar o cigarro
                                        - Para a Alemanha?
e no restaurante, na mesa junto à cozinha, havia uma cadeira vaga entre o chefe de repartição e o Ricardo, pratos alentejanos na parede, um relógio antigo, um pote de flores e uma lebre empalhada num nicho, os colegas tinham despido os casacos, arregaçado as mangas, alargado o nó da gravata, estendiam os garfos para as travessas, conversavam riam, e era como me estivesse a despedir de tudo, a dizer adeus a tudo, e a mulher, que usava anéis em quase todos os dedos, procurando cigarros às cegas, sem compreender
                                        - Um bilhete de ida e volta sai-lhe mais barato
máquinas de escrever eléctricas, horários de aviões, perfumes misturados, uma agitação preguiçosa, saí a guardar um envelope na carteira, o Cais do Sodré coroava-se de gaivotas, A partir de amanhã nunca mais vejo isto, caminhei trinta metros se tanto sob as nuvens baixas, empurrei o guarda-vento e lá estavam, num fumo de guisado, as discussões dos colegas, as piadas, as anedotas, os empregados que se tratavam pelo nome, a timidez do Ricardo, a minha voz, como se não fosse a minha
                                        - Só me interessa um bilhete de ida, não faço tenções de voltar...

in A morte de Carlos Gardel, António Lobo Antunes